No Mundo do Rock

Com um pé no passado, Cathedral funde estilos e faz música pesada contemporânea

Banda começou como precursora do doom metal, e hoje se identifica mais com o stoner rock. Psicodelia e arte medieval também são marcas registradas. Fotos: Joe Dilworth (deserto) e Divulgação/Nuclear Blast.

Ingleses perdidos no deserto stoner rock

Ingleses perdidos no deserto stoner rock

Quando Lee Dorrian cansou de gritar e deixou o Napalm Death, estava formado o Cathedral. Isso aconteceu lá pelo final dos anos 80, após a gravação do álbum “From Enslavement to Obliteration”. Com forte inspiração nos riffs e nas músicas lentas e arrastadas do Black Sabbath, o grupo inglês acabou sendo uma referência dentro o então chamado doom metal, termo que incluía outros nomes, como o sueco Candlemass e o também inglês Paradise Lost. Isso na música, porque no conceito estético do Cathedral como um todo, as referências estão no psicodelismo setentista, no artista plástico Hieronymus Bosch – quase todas as capas dos discos têm o estilo dele – e em temas que envolvem a dualidade das coisas terrenas. Não é à toa que o nome do disco mais recente, lançado no ano passado, é “The Garden Of Unearthly Delights”, uma clara referência ao quadro mais famoso do artista, “O Jardim das Delícias”.

Ao todo, o Cathedral já lançou nove álbuns e um sem número de EPs, e foi até contratado da Columbia (Sony BMG no Brasil), mas logo voltou ao meio underground. Onde, aliás, o grupo tem um trabalho dos mais respeitados, e que nos últimos anos acabou sendo uma espécie de referência para as novas bandas identificadas com o stoner rock, assim como o Kyuss e o Soundgarden. O grupo já teve a formação bastante alterada, mas já há dez anos conta, além de Dorrian, com Garry Jennings (guitarra), Leo Smee (baixo) e Brian Dixon (bateria).

Conversamos com Lee Dorrian, por telefone, ainda no final do ano passado. Bem humorado e com uma paciência exemplar, ele destrinchou essa coisa de psicodelismo setentista, da importância do Black Sabbath para o Cathedral, detalhes da gravação do último álbum, nu-metal, e até de Adão e Eva. Confira os principais trechos dessa entrevista exclusiva:

Rock em Geral: No começo as pessoas costumavam dizer que o Cathedral fazia doom metal. Nos últimos tempos a banda tem sido apontada como um das pioneiras do stoner rock. Como você vê esse tipo de coisa?

Lee Dorrian: Pioneiros do stoner rock? Eu realmente não vejo nada nesse sentido. Nós somos apenas uma banda que toca o que tocamos esse tempo todo. A música que tocamos essencialmente vem de uma legião de bandas de hard rock/heavy metal com toques de tudo. Há elementos do punk e de música progressiva no que fazemos. E eu acho um pouco restritivo colocar um rótulo na banda. Eu gosto de pensar que pensamos o metal de uma forma livre, não temos medo de experimentar as coisas e de manter nossas influências abertas. Nós apenas fazemos o que fazemos e eu não gosto de rotular nossa música para facilitar a vida das pessoas. Nós somos apenas o Cathedral, tocamos a música que tocamos e que gostamos de tocar.

RG: Te incomoda quando dizem que o Cathedral faz stoner rock?

Lee: As pessoas podem nos chamar do que quiserem, mas eu nunca soube exatamente o que é stoner rock, então não posso responder esta pergunta.

RG: Dizem que o stoner rock nasceu com o Black Sabbath. Você admite que há muito de Black Sabbath na música de vocês?

Lee: Não, por que eu deveria pensar assim? Quero dizer, obviamente o Sabbath é uma inspiração para nós. Essencialmente nossa música é feita de riffs e o Black Sabbath foi inovador dos riffs na música pesada. Então, nesse sentido, nós nos inspiramos no Black Sabbath. As pessoas vivem dizendo isso, mas eu acho que é preguiça. Para ser sincero, eu não acho que nós parecemos tanto assim com o Black Sabbath.

RG: Falando do conceito da banda como um todo, parece haver muitas referências ao movimento hippie e psicodélico dos anos 70. Como vocês desenvolveram isso e trouxeram para os dias de hoje?

Lee: A música que fazemos é apenas um reflexo da música de que gostamos. Então, conforme o tempo passa, descobrimos mais tipos de música e nos tornamos mais abertos em relação à música de que gostamos e ouvimos. Eu tenho sido um colecionador de música underground psicodélica e progressiva há um bom tempo, e é natural que este tipo de música apareça na música que tocamos. Não há nenhum grande planejamento por trás disso. Nós não tentamos ser uma banda que soe como uma banda de 1969 ou 1971, somos apenas o Cathedral, tocando a música que tocamos, a partir da nossa inspiração. Se gostamos de certos tipos de música, queremos que apareçam no que fazemos. Não somos uma banda que faz música para ficar na moda. Somos uma banda que toca a música que consideramos atemporal e a inspiração que encontramos é em grupos que ainda são atemporais, uma música que não vai morrer nunca. No futuro, gostaríamos de ser uma dessas bandas, mesmo quando a banda terminar, ou quando nos separarmos. Pelo menos nossa música não pode ser acusada de ser oportunista, ou de existir apenas em um certo lugar, em um certo momento. Só queremos manter viva a música que gostamos.

RG: Em todas as capas dos discos do Cathedral parece haver uma influência muito grande do famoso artista medieval Hieronymus Bosch. Como isso funciona na banda?

Lee: Muita gente diz isso. Na verdade Dave (Patchett, artista responsável pelas capas) é um grande fã de Bosch, principalmente por causa da mensagem religiosa no seu trabalho e do paralelo entre manipulação religiosa/egoísmo e as coisas ruins que acontecem nesse mundo; e da hipocrisia, que tem a ver com a religião organizada. Nós não somos essencialmente uma banda política, mas este tipo de coisa de fato aparece no que somos. Há elementos de pecado, um tipo de conteúdo lírico nas nossas letras, então ele realmente é muito inspirado pelo Bosch, mas eu não diria que ele tentou deliberadamente copiar a obra, apenas que muito de sua inspiração vem da metáfora de Bosch.

RG: No caso desse último disco, até o título é idêntico a um dos trabalhos mais famosos do Bosch (“O Jardim das Delícias”). Vocês compuseram as músicas pensando nesse trabalho?

Lee: Não, porque inicialmente o álbum se chamava “Seeds of Decay”, quando comecei a trabalhar nele. Foi somente quando o álbum estava perto de ser terminado, um pouco antes de nós começarmos a gravar, que eu pensei que o nome “Seeds of Decay” era um pouco chato e unidimensional. E quanto mais eu olhava para capa do álbum, mas eu fazia uma relação com o Jardim do Pecado Original, o Jardim do Éden. E eu pensei que “The Garden of Earthly Delights” é um título brilhante para a pintura de Bosch, um título que simboliza tudo. Então eu pensei em distorcer um pouco o título e chamamos o álbum de “The Garden of Unearthly Delights”.

RG: É um disco conceitual? E a música “The Garden”?

Lee: Não é necessariamente um álbum conceitual. Se você pensar na primeira música, “Tree of Life and Death”, e depois na “The Garden”, musicalmente elas são de alguma forma baseadas na chamada evolução do jardim do Éden, onde Adão e Eva foram criados e de onde a humanidade supostamente evoluiu. Se você ler as letras, de certa forma você tem uma idéia do significado do Mal do álbum. Essa música começa com Adão e Eva correndo nus no jardim de infinita beleza e todos os pássaros estão cantando e todas as flores brilhando e o céu está azul. Se você avançar no tempo milhares de anos até onde estamos agora, vai ver que o mundo não é um lugar assim tão bonito quando supostamente era naquele jardim.

RG: Fazia tempo que vocês vinham querendo fazer uma música longa como “The Garden”?

Lee: Nós compusemos uma música como essa antes, há uns 14 anos. No EP “Statik Majik” tem uma música chamada “The Voyage Of The Homeless Sapien”, que tem aproximadamente 25 minutos de duração, mas que é muito mais espontânea, improvisada. Nós queríamos ser experimentais de novo, porque nos demos conta de que havíamos perdido essa borda experimental nos nossos álbuns mais recentes. Queríamos que esse álbum fosse um pouco mais construtivo, um pouco mais planejado. Nós não queríamos ser vistos como uma banda que ficasse com dois riffs tocados de forma extremamente lenta por uma hora. Queríamos fazer uma faixa que mantivesse a atenção e que tivesse muita dinâmica, muita diversidade. Essa foi nossa principal intenção.

O Cathedral em seu quartel general e intelectual

O Cathedral em seu quartel general e intelectual

RG: Já tocaram essa música ao vivo? E a reação do público?

Lee: Sim, nós já tocamos essa música ao vivo, acredite ou não, em torno de três semanas atrás, em Londres. Eles adoraram, na verdade. Nós estávamos um pouco nervosos de incluir uma música tão longa no repertório, mas ao mesmo tempo, nós já tocamos tantas vezes em Londres ao longo dos anos que pensamos que era hora de dividir algo um pouco diferente com o público, que era hora de nos arriscarmos um pouco; e de fato é bastante estimulante fazer isso.

RG: Como vocês decidiram colocar vocais femininos nas músicas? É que há muito disso hoje no heavy metal…

Lee: Eu não dou a mínima para isso, não se trata de mulheres cantando heavy metal. Nós não fizemos por isso, mas porque as influências nessa música são muito do hard rock/progressivo e folk dos anos 70 e a Lo (Polidoro, vocalista) canta numa banda (Circulus) que não é de metal de jeito nenhum, ela canta progressive folk em uma das bandas do meu selo.

RG: Faz lembrar Annie Haslam, do Renaissance…

Lee: Sim, claro, o Renaissance é um dos meus grupos favoritos. Esse é todo o ponto, nós não estamos tentando ser uma dessas malditas bandas como a Nightwish ou algo assim, ou uma dessas bandas da moda. Quero dizer, se fôssemos uma banda tentando ser moda, não teríamos composto uma música de 28 minutos que vai do metal ao funk. Nós apenas queríamos ter partes progressivas; se houvesse mais vocais ao longo da música, eu acho que seria bem chato. Nós já queríamos usar vocais femininos fazia algum tempo e esse nos pareceu o momento apropriado para isso.

RG: E as crianças que cantam em “Beneath a Funeral Sun”?

Lee: Foi idéia do produtor porque o coro nessa música estava suplicando à mãe natureza inspiração para a humanidade, pois o mundo estava ruindo. Então, trata-se de crianças de Deus falando com o Senhor. Não é religioso. Eu não sou religioso de jeito nenhum, não posso ser nada diferente de um completo agnóstico. Mas é sobre crianças suplicando ao Homem que pense sobre o que está fazendo em termos das guerras e da maneira como a humanidade está ruindo.

RG: A música “Oro The Manslayer” é muito rápida, se compararmos com outras do disco. Seria uma espécie de volta às raízes?

Lee: Não sei, eu diria que provavelmente esta é uma das músicas mais diferentes, é a mais metal “das antigas”. De certa forma, você pode compará-la um pouco com “Soul Sacrifice” ou algo assim; é uma das músicas mais diferentes do álbum.

RG: “Corpsecycle” é outra que se destaca…

Lee: “Corpsecycle” é a música mais cativante do álbum, é bastante melódica e no final é bastante brutal. É a minha faixa favorita.

RG: Mais fácil de tocar no rádio…

Lee: Mais fácil de tocar no rádio, mas eu ainda não ouvi…

RG: Você participou de uma das formações do Napalm Death. Você sente saudades desse período?

Lee: Eu não sinto falta nenhuma daquela época, mas por outro lado eu também não me arrependo de tê-la vivido. Eu tive alguns grandes momentos, o Napalm Death era uma banda que mudou muito a compreensão das pessoas acerca da música. Para ser sincero, eu amava o Napalm, e não tinha realmente nenhum plano ou desejo de fazer uma nova banda. Quer dizer, eu tinha conversado com o Michael Amott, do Arch Enemy, sobre o projeto de uma banda que seria o Cathedral. Shane (Embury, do Napalm) seria o baixista. Mas quando começamos a criar, havia tanto da música que eu não gostava que eu realmente não queria me envolver mais no projeto. Então o Cathedral quase morreu. Nós nunca planejamos ser uma banda séria de fato. Inicialmente, nós só queríamos gravar uma demo, esse era nosso objetivo principal, e produzir um ou dois EPs de sete polegadas. Nós realmente não esperávamos estar por aqui 16 anos depois. Apesar de não sabermos como chamar esta música, de ela ter vários nomes, ela continua extrema. É claro que aquela época era o auge do death metal, então nós fizemos algo diferente e eu acho que isso confundiu as pessoas um pouco. E porque eu deixei o Napalm por uma série de razões, as pessoas de certa forma tinham um pouco de respeito pelas razões que me levaram a deixar a banda. Então, um pouco depois de ter deixado o Napalm, nós formamos uma nova banda e por sorte as pessoas começaram a gostar do que estávamos fazendo.

RG: Comparando as letras do Napalm Death com as do Cathedral, podemos imaginar que você também mudou bastante de um período para o outro…

Lee: Difícil de dizer porque ainda tenho basicamente as mesmas crenças de quando eu tinha 18, 19 anos, quando eu estava no Napalm Death. Ainda sou mais ou menos a mesma pessoa. Só não quero atirar política nas pessoas todos os dias; não quero escrever cada música apenas para provar algum ponto acerca do estado do mundo. Mas mesmo tendo dito isso, muitas das letras do Cathedral são baseadas no mundo real, e muitas são sobre os problemas da humanidade e o estado do meio ambiente e do mundo. Eu só não quero mais que minhas letras sejam óbvias neste conteúdo. Eu já fiz isso. Eu não quero gritar para as pessoas e dizer a elas o que devem fazer. Eu acho que na maior parte do tempo o conteúdo das letras do Cathedral é mais no sentido de advertir as pessoas do que de dizer a elas o que fazer. Há uma mensagem escondida por trás de muitas de nossas músicas, mas eu não gosto que seja óbvia demais. Música é para entreter tanto quanto é para educar.

RG: Como anda sua gravadora, a Rise Above?

Lee: Vai indo realmente bem. Especialmente agora, nós temos uma ótima gama de bandas, todas tão diferentes. Há alguns anos atrás a cena do rock no mundo estava soterrada de bandas que eram realmente medianas e que apenas copiavam estilos. Daquele momento, algumas bandas legais se desenvolveram e nós temos algumas grandes bandas, especialmente uma chamada Witchcraft, da Suécia, que tem um frescor muito grande. E como eu disse, o Circulus, que canta no álbum do Cathedral, é como uma banda de folk progressivo medieval, são fantásticos e têm recebido bastante atenção da mídia no Reino Unido. Tenho algumas bandas novas, como The Capricorns, que são principalmente instrumentais e fazem um som pesado bem moderno. Há uma outra banda nova chamada Taint, eles são realmente brutais, um som muito contemporâneo, com elementos muito pesados. E também o Grand Magus, provavelmente a banda mais metal dentre as do nosso selo. Então tudo é muito variado e muito bom e obtivemos boas respostas dos últimos lançamentos.

RG: Você se associou com alguma grande gravadora para fazer a distribuição do selo?

Lee: Não, nosso principal distribuidor é uma companhia chamada Plastic Head, baseada na Inglaterra, que distribui nossos álbuns por toda a Europa.

RG: Uma vez eu vi uma camiseta do Cathedral com a frase “death to nu-metal”, o que me lembrou a frase “death to false metal”, do passado. Vocês têm problemas com as bandas desse gênero?

Lee: Na verdade, não, eu realmente não ligo a mínima para nu-metal, eu apenas pensei que era muito engraçado e que venderíamos mais camisetas, porque nós estávamos quebrados.

RG: O Korn acaba de lançar um novo disco por uma nova gravadora…

Lee: Eu não dou a mínima para o que o Korn faz. Eles fizeram uma boa música há alguns anos, “Here to Stay”, que eu gosto, é muito boa. Afora isso, eu acho que a música deles é um pouco falsa. É tudo muito “hit”, ficou na moda por algum tempo e depois ficou redundante. Mas eu queria manter viva a música com que crescemos. Bandas como Black Sabbath, Sex Pistols, Discharge, Celtic Frost, e bandas de música progressiva são o tipo de banda que buscamos, o tipo de banda cuja música queremos manter viva.

Garry Jennings, Brian Dixon, Lee Dorrian e Leo Smee

Garry Jennings, Brian Dixon, Lee Dorrian e Leo Smee

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