O Homem Baile

Entre a cruz e a espada

Depois de chuva e atrasos, o Cidadão Instigado sintetizou a segunda noite do Festival Se Rasgum, marcada pela linha tênue entre o bom e o mau gosto, e pela vocação do público de Belém para o rebolado. Foto: Renato Reis/Divulgação (1) e Well Maciel/Divulgação (2).

À vontade, Fernando Catatau levou o Cidadão Instigado a fazer um dos melhores shows da noite

À vontade, Fernando Catatau levou o Cidadão Instigado a fazer um dos melhores shows da noite

Com cerca de duas horas de atraso o segundo do dia do Festival Se Rasgum foi até o sol raiar, ontem, em Belém. “Produção, diga para a TAM atrasar o meu vôo que eu vou tocar todas as músicas”, disse o animado Otto”, já depois das seis da matina. Como atração principal da segunda noite, ele acabou prejudicado ao tocar para um público menor do que aquele que compareceu ao African. Mais sorte deram Odair José – que tocou com o Dead Lover’s Twisted Heart - e o Cidadão Instigado, que fez o melhor show da noite. As bandas iniciais sofreram com o pouco público, afastado por um toró daqueles, e, no palco B, coberto, Graforréia Xilarmônica de Cabruêra reinaram absolutos.

A turma de Fernando Catatau teve um bom tempo para se apresentar, superior aos 30 minutos destinado a cada uma das bandas. Por algum motivo o guitarrista e líder do Cidadão Instigado, em geral soturno, estava bem à vontade, e até lembrou do passado, quando teve um skate surrupiado na primeira vez em que esteve em Belém. “Agora estou de volta tocando guitarra no rock’n’roll!”, vibrou. O grupo fez o set básico de festivais, que não inclui todas as músicas do último – e mais celebrado – disco, “U-HUUU”. O público pirou com a viagem de “O Cabeção” e o volume inesperado no som fez de “Escolher Pra Que” o verdadeiro hit que sempre se anunciou. Catatau ainda sacou do disco anterior, “Método Túfo”, a inacreditável “O Pobre dos Dentes de Outro”, levada pela platéia na palma da mão.

O Cidadão Instigado, de certa forma, sintetizou uma noite que, antes, já vinha se dividindo entre o pop/rock e o brega. Catatau e o baixista Rian Batista fazem parte da banda de Otto, mas têm atuação discreta. Também, pudera, às cinco e tanto da manhã, nem o conhecido carisma do cantor, acostumado a não ficar parado e a conversar bastante com o público, conseguiu tirar do público, vencido pelo cansaço, mais do que uma animação já quase burocrática.

No palco interno o Cabruêra foi o primeiro grupo a desfrutar da interação com o público. E não era pra menos. O band leader Arthur Pessoa, de carisma latente, já entra no palco mandando um repente colante acompanhado por todos na palma da mão. No cardápio, embolada, música regional nordestina e suas variações, tudo turbinado pelo duo de metais e por certo peso de guitarra que torna o cenário atraente ao público. Não faltou o “solo de caneta bic” (é manjado, mas todo mundo gosta), moshs de Arthur e uma roda de ciranda aberta bem o meio da plateia, num dos melhores momentos da noite. No palco principal, o Soatá, de Brasília começou bem, fazendo a chuva parar. O grupo bebe na fonte do mangue beat ao misturar o peso de guitarra (identificado com o nu-metal) com uma percussão pesada. O diferencial vem na boa voz de Ellen Oléria. Foi só o início de uma noite dançante de dar gosto.

Indie chique x brega

Nelsinho Rodrigues já inicia o show chamando o púbico para dançar no palco

Nelsinho Rodrigues já inicia o show chamando o púbico para dançar no palco

Curiosamente a curadoria do festival apontou para duas metades nessa segunda noite: um lado regional e brega, e outro inacreditavelmente voltado para o indie rock. Foi o que fez a Graforréia Xilarmônica brilhar no aconchego do segundo palco. Nem a corda de guitarra arrebentada por Carlo Pianta, com menos de um minuto de show estragou o humor do trio gaúcho e do público mais afoito que se aglomerou na beirada do palco. As melhores foram os clássicos do cancioneiro do rock independente brasileiro: “Empregada”, também conhecida com outro gaúcho, o baladeiro Wander Wildner; a impagável “Patê”; e “Amigo Punk”, o hino da juventude gaúcha que tem serventia universal, coisa rara em se tratando de tema tão local.

O Rio de Janeiro trouxe Lê Almeida ao festival. Trata-se de uma banda indie fiel ao gênero. Tanto que a cada música iniciada era fácil fazer a conexão com medalhões do gênero. Era Pixies de um lado, Guded By Voices do outro… até que o cover para “Loretta’s Scars” – “em homenagem à vinda do Pavement ao Brasil”, disse o vocalista – deixou tudo ainda mais cristalino. O local Dharma Burns, que abriu a noite, também tem lá sua identificação com o indie, mas este com um pé na década de 80 – entenda-se The Cure. Já o Mostarda na Lagarta, outra local, nada tem de indie; faz um rock básico e inclinado ao engraçadinho. Tocando debaixo de chuva torrencial, reuniu um bom grupo de dedicados amigos na frente do palco principal.

A parte brega/regional da noite foi coroada com Odair José, que teve como banda de apoio os mineiros do “Dead Lover’s Twisted Heart”. Com um repertório terrível, mas, de conhecimento geral, Odair empunhou seu violão de modo triunfal, colocando todo mundo para cantar hits do submundo brega como “Eu vou Tirar Você Desse Lugar” e “Pare de Tomar a Pílula”. Impressionante como a irrelevância do cantor – de voz sofrível, porém facilmente reconhecível - se converteu em unanimidade imediata; teve até direito a bis. Isso porque não é muito difícil agradar ao público de Belém, disposto a dançar sob qualquer pretexto. Vejam que é só Nelsinho Rodrigues entrar no palco para que dezenas de fãs subam no palco de imediato para cair no rebolado. O ritmo é chamativo – atraente até -, mas a música tem marcação única e melodia monocórdica, de modo que é impossível não se entediar já na segunda ou terceira música. Mas vai dizer isso para o rebolativo público local… E o mau gosto ainda aumenta com o próprio Nelsinho, de voz limitada e forçando falsetes à Whitney Huston. Ai, ai, ai…

Coube ao Félix e Los Carozos, encarregado de fechar os trabalhos no palco B. O grupo é uma dissidência do La Pupuña vestido com mantas à Rush fase “2112”, e a guitarrada é o elemento principal. Ironicamente o ritmo marcado e identificado com a surf music é bastante parecido com o da banda de baile de Nelsinho Rodrigues, mas Félix faz a diferença com a guitarra. É a prova de que é possível fazer música pop e dançante com um pouco mais de criatividade usando a mesma matriz e sem cair no lugar comum do mau gosto popularesco. O problema é que o grupo não resistiu e levou ao palco a figura borrada de Gaby Amarantos, apresentada como rainha (não diva) do tecnobrega. Aí o tênue limite que separa o bom gosto do ruim foi jogado fora. Uma pena.

O Festival Se Rasgum continua hoje. Clique aqui para saber mais.

Veja como foi a primeira noite do Festival

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