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Nos eixos

Associação Brasileira de Festivais Independentes inicia nova fase com a chegada ao poder de nome de destaque do Fora do Eixo, movimento que ampliou e descentralizou o mapa da música brasileira através de ações associativistas. Fotos: Reprodução/internet.

Talles aponta para cartaz que cita espécie de dinheiro fictício criado pelo 'Fora do Eixo' em Cuiabá

Talles aponta para cartaz que cita espécie de dinheiro fictício criado pelo 'Fora do Eixo' em Cuiabá

A ABRAFIN (Associação Brasileira dos Festivais Independentes) nasceu para atender a uma possível demanda da Petrobras para o patrocínio de um circuito nacional de festivais independentes. O tal circuito nunca saiu do papel oficialmente, mas foi a entidade que exerceu forte influência na criação do edital que anualmente a empresa abre no mercado – só este ano, seis festivais filiados à ABRAFIN foram contemplados. Muito pouco, na visão de Talles Lopes, que compara a fatia com os patrocínios e incentivos fiscais destinados a outras áreas. Talles é, desde o início do ano, o Presidente da entidade, o primeiro do Movimento Fora do Eixo a chegar ao poder, pelo voto direto, sim, mas de forma consensual, já que, oficialmente, não há oposição nos corredores (ou computadores) da ABRAFIN.

Para quem ainda não se deu conta, “Fora do Eixo” é um movimento descentralizado que se alastrou pelo País no intuito de fomentar a música local, mas com amplitude nacional e até global. O nome se refere à atuação ser longe do “eixo dominante Rio-São Paulo”, mas, também, segundo seus líderes, por representar “uma nova forma de se olhar para a produção cultural, representada na música pelas grandes gravadoras”. Ao todo, Talles avalia que o “Fora do Eixo” reúne 78 coletivos integrados no país e ao menos uma centena de pontos parceiros. Articulado com a ABRAFIN, o movimento chega ao poder com o novo presidente, substituindo as duas gestões seguidas de Fabrício Nobre, da produtora Monstro, de Goiânia, e idealizador da entidade, junto com Paulo André, do Abril Pro Rock, do Recife. O novo presidente é formado em Ciências Sociais e se destacou à frente do festival Jambolada, de Uberlândia.

Acontece que, nesses cinco anos, além de surgir como representante respeitável dos festivais, a ABRAFIN passou a ser alvo de críticas que vão desde bandas que se acham preteridas nos eventos filiados, até outras que alegam tocar de graça justamente para aqueles que defendem o fortalecimento da cadeia produtiva no meio. Como se comunica pouco com a grande mídia, viu até o patrocínio que os afiliados conseguem através de leis de incentivo ser duramente questionado por um colunista sensacionalista de um jornal de grande circulação. Essas foram só algumas das questões abordadas nessa entrevista exclusiva concedida via e-mail, com direito a réplicas, com Talles Lopes.

O Presidente também fala do que pretende implementar em sua gestão, explica em detalhes o “Fora do Eixo” e seus trocentos “Coletivos”, e sugere uma “ponte” com o Rock In Rio. Tudo numa linguagem até simples, se considerarmos a verborragia empolada em geral usada pelos representantes do “Fora do Eixo”. O problema é que Talles atendeu ao pedido do repórter de não economizar nas palavras, e aí já viu… a entrevista teve que ser dividida em duas partes. Leia a primeira abaixo ou clique aqui para ir direto para a segunda parte.

Rock em Geral: Você assumiu a ABRAFIN em janeiro. Que avaliação faz desses primeiros meses à frente da entidade?

Talles Lopes: Acredito que estes meses têm sido muito importantes, principalmente para o processo de reconhecimento do campo de trabalho e alinhamento da nova diretoria, para a construção de um trabalho coeso e eficiente em toda a gestão. Já fizemos dezenas de reuniões (presenciais e virtuais) com os novos diretores para chegarmos a um programa claro e objetivo para a entidade, além de termos participado de dezenas de encontros e reuniões representando a entidade. É a primeira vez que temos uma mudança na presidência da entidade, e isto levou a uma necessidade de transição burocrática e administrativa inédita. Transferimos a sede da entidade, de Goiânia para São Paulo, e estamos implementando, paulatinamente, um novo modelo de gestão financeira e administrativa, que também ocupou boa parte destes primeiros meses de trabalho. Além disso, já iniciamos um novo programa de encontros regionais, tendo realizado o primeiro na região Nordeste, durante o Porto Musical; o segundo vai acontecer em abril, na região Sul, durante o festival El Mapa de Todos, em Porto Alegre (a entrevista foi concluída no final de março). Estamos trabalhando na reestruturação e atualização do site da entidade, que deve ter nova versão lançada agora em abril, e que será referência de toda nova política de comunicação que pretendemos desenvolver. Tudo isso foi acompanhando de um trabalho de ouvidoria de todos os filiados, numa perspectiva de ampliar ainda mais o acompanhamento e a relação com cada um dos festivais, além de iniciarmos também um maceramento e diagnóstico de dezenas de festivais que já nos procuraram nos últimos seis meses, interessados em se filiar, e que também devem ser acompanhados e atendidos. Ou seja, começamos num ritmo intenso, e não poderia deixar de ser diferente, tratando de uma entidade como a ABRAFIN.

REG: A situação que você encontrou era muito diferente do que você imaginava?

Talles: Já era diretor da entidade na última gestão, ocupando a Secretaria Geral, e desta forma já estava bastante familiarizado com a dinâmica de trabalho, e todas as dificuldades que enfrentamos. Talvez o fato de ter assumido a presidência me fez ter mais consciência da importância da ABRAFIN no cenário musical brasileiro, o que na verdade só serve de estímulo, não só a mim, mas a todos os novos diretores. Temos hoje uma grande equipe disposta a enfrentar este desafio e dar sequência ao excelente trabalho desenvolvido pela gestão anterior e nestes primeiros meses podemos entender melhor a dinâmica burocrática e administrativa, já que no campo político e nas relações com o mercado estamos dando sequência a um trabalho que foi construído nos últimos cinco anos. Já temos um acúmulo de experiências que não pode ser descartado e que serve de base para o desenvolvimento do nosso trabalho, e sabemos que temos muito que avançar e é nisso que estamos focados neste momento: dar sequência ao processo de conquistas sabendo dos diversos processos que precisam ser qualificados e aprimorados.

REG: Como funciona a eleição na ABRAFIN? Como você foi eleito?

Talles: A eleição da ABRAFIN segue um modelo normal de eleição, cada festival tem direito a um voto, e as eleições ocorrem de dois em dois anos. Contudo, temos um campo de alinhamento muito bacana na entidade, que fez com que nas duas eleições que ocorreram até hoje, as chapas fossem construídas de forma consensual. Desta forma, nossa chapa teve todos os votos dos 32 festivais filiados presentes na eleição. Já tínhamos um entendimento dentro da entidade que a continuidade do trabalho e o avanço na busca de criação de uma nova diretoria que tivesse mais pessoas participando era necessária, e, neste sentido, a construção de uma continuidade, e ao mesmo tempo de uma política de renovação dos quadros e lideranças, fez com que o meu nome e do Ivan Ferraro, da Feira da Música de Fortaleza, surgissem como referencia para encabeçar a chapa. Um fator que fez muita diferença também foi eu ter me preparado para me dedicar exclusivamente a gestão da entidade, abandonando uma série de outras atividades que desenvolvia. Os demais nomes para a diretoria foram discutidos durante a assembléia de eleição a partir da disposição dos filiados em formarem esta nova equipe de trabalho. Esse acaba sendo um fator fundamental, o quanto as pessoas estão dispostas e se sentem à vontade de assumir o desafio de gerir uma entidade, que necessariamente exige abandonar uma série de outras atividades pessoais. Ainda não passamos por um processo de enfrentamento de chapas nas eleições da ABRAFIN, e acredito que isso seja um sinal de que as pessoas estão contentes com o rumo do trabalho desenvolvido.

REG: Podemos considerar então que nunca houve uma chapa de oposição na ABRAFIN?

Talles: Se nunca tivemos um conflito de chapas, podemos afirmar isso sim. Ou seja, podem até ocorrer discordâncias, mas até hoje isso não resultou numa articulação que buscou resolver a partir da disputa eleitoral. Isso talvez ocorra, porque as pessoas percebem que estas discordâncias podem ser encaminhadas propositadamente na relação com a diretoria, o que na minha opinião, é uma prova da abertura democrática e da convergência de interesses da entidade.

REG: Dê uma geral no seu histórico no meio independente, antes de assumir a presidência da entidade:

Talles: Sou formado em Ciências Sociais, e desde o tempo da universidade me envolvi com a cultura e a música. A partir de 1998 desenvolvi um trabalho mais consistente dentro da Universidade Federal de Uberlândia para a valorização da música autoral. Participei de alguns grupos musicais na Universidade, mas sempre tive um maior envolvimento com produção. A partir de 2001 comecei a produzir a banda uberlandense Porcas Borboletas, e desenvolvi este trabalho até 2010. Durante este período universitário participei do processo de concepção e criação do Instituto CUCA, da UNE, e a partir de 2005 passei a realizar o festival Jambolada, em Uberlândia, que me possibilitou participar do processo de criação da ABRAFIN. A partir de 2005 também participei da concepção e construção do Circuito Fora do Eixo, e me envolvi também na plataforma do Conexão Telemig Celular, que desde 2009 passou a se chamar Conexão Vivo. Em 2007 montei com outros parceiros em Uberlândia, o Coletivo Goma, que gerenciou o espaço cultural Goma, entre 2007 e 2010, recebendo mais de 500 artistas independentes de todo o Brasil e exterior, sendo uma casa referência para a circulação de novos artistas no Brasil. Participei ativamente do processo de criação do Fórum da Música de Minas e do Programa Música Minas, e fui um dos idealizadores e membro da primeira diretoria das Casas Associadas, associação nacional de casas de shows independentes, hoje presidida por Ale Youssef, do Studio SP. Faço parte desde 2010 do Colegiado Setorial de Música e do Conselho Nacional de Políticas Culturais e já participei de dezenas de Seminários, Oficinas e Palestras no Brasil e exterior. Ou seja, de certa forma estou bem envolvido com todos estes novos processos que aconteceram na música e cultura brasileira na última década, e acredito que isso tenha me credenciado a assumir o maior desafio desta trajetória cultural, que é a presidência da ABRAFIN.

REG: Quais as prioridades da sua gestão à frente da entidade? Já está conseguindo fazer o que pretendia nesse início?

Talles: Minha principal prioridade é conseguir ampliar ainda mais a qualidade dos festivais independentes no Brasil e dar sequência ao trabalho de valorização desta plataforma tão importante na história da música brasileira. Para isso, acho fundamental que a ABRAFIN se assuma definitivamente como uma entidade classista, e tenha um foco cada vez mais claro nos festivais e nas suas necessidades e potencialidades. Com o crescimento da entidade e do número de filiados, fica cada vez mais difícil pensar em uma única ação que possa dar conta de atender a toda esta diversidade de anseios e interesses, e por isso o nosso grande foco é conseguir construir mais parcerias e programas que, somados, possam dar conta deste processo de qualificação. Neste sentido, estamos radicalizando num processo de acompanhamento personalizado de cada festival, para diante disso podermos entender onde podemos contribuir, quais os links com possíveis patrocinadores podem ser feitos, que consultoria técnica, negociação conjunta ou serviço é possível prestarmos, e auxiliarmos o festival filiado. Acredito que se aliarmos um bom trabalho técnico, com todo o processo de construção política que a ABRAFIN desenvolveu, temos o equilíbrio ideal para fazermos uma boa gestão à frente da entidade. Neste momento nosso maior desafio é técnico, por isso nosso foco principal foi na formação de uma excelente equipe de trabalho.

REG: Você pode explicar melhor como seria feito esse acompanhamento personalizado? Seria uma espécie de fiscalização da entidade junto aos festivais?

Talles: Este acompanhamento se dá a partir do contato estabelecido com o produtor. Se você estabelece um diálogo permanente com o produtor, passa a entender melhor tudo que cerca o seu festival, e passa assim a ter melhores condições de contribuir. Esta sempre foi a forma de trabalho dentro da entidade, mas seu crescimento exige que avancemos nisso também, com um aquecimento de deliberações dentro da lista de discussão, mas também com a construção de pontes de diálogos mais constantes, que só podem acontecer se você tem programas de trabalho prático juntos a estes festivais. Se não ativarmos programas de comunicação, captação de recursos, prestação de serviços técnicos, negociação coletiva, a gente não possibilita que mais pessoas dialoguem, como também mantemos o diálogo apenas no campo político e das relações pessoais. É mais criar formas dos festivais dialogarem com a diretoria e a partir daí nos fiscalizarem e nos ajudarem, do que a entidade fiscalizar os festivais.

REG: Desde que a ABRAFIN foi criada, essa é a primeira vez que o grupo mais – digamos – antigo, que fundou a entidade, sai da presidência. Era uma mudança necessária? O que muda nesse sentido?

Talles: Na verdade este processo de transição e busca de um equilíbrio de gerações já estava em curso deste a gestão passada, onde festivais mais novos como o Jambolada já estavam bastante envolvidos com a gestão, e este movimento de renovação, no meu entender, acaba sendo natural e necessário. Nesta nova gestão, o que procuramos fazer é dar sequência a esta renovação, mas sem perder de vista a necessidade de ter este equilíbrio, e é por isso que temos pessoas como o Ivan Ferraro, da Feira de Fortaleza, o Fernando Rosa, do El Mapa de Todos, e a Karla Martins, do Festival Varadouro, que têm muita experiência e representam, neste novo momento, esta geração mais antiga. Contudo, acredito que esta separação entre festivais novos e antigos não consiga dar conta do espectro de forças e do contexto atual dos festivais independentes no Brasil. Na minha opinião, a grande diferenciação que existe é entre produtores de festivais mais ligados ao Mercado e ao Segundo Setor, e produtores mais ligados a lógica do Terceiro Setor, e o grande desafio é como vamos conseguir o equilíbrio entre estas duas esferas. Se formos avaliar a gestão passada onde a entidade era capitaneada pelo Fabrício Nobre e Pablo Capilé, já percebemos um trabalho na busca deste equilíbrio entre Mercado e Terceiro Setor, que agora é representado pela dobradinha que faço com Ivan Ferraro, emblemática pelo fato de termos um produtor de festival organizado por uma associação, e o produtor da Feira de Música mais antiga do Brasil.

REG: Você pode explicar os conceitos de “Mercado”, “Segundo Setor” e “Terceiro Setor”?

Talles: Entendo que temos três campos de atuação social: o do Estado, o poder público ou Primeiro Setor, onde as ações supostamente são voltadas para o bem público; o Mercado, campo das iniciativas privadas e dos interesses privados, chamado Segundo Setor; e as iniciativas privadas que têm um fim público, o chamado Terceiro Setor. Esta é uma definição amplamente utilizada pela Sociologia e pela Ciência Política. No caso dos festivais, temos um conjunto de festivais que são organizados por pessoas físicas, ou produtoras que se organizam nos moldes de empresas, e que estariam desta forma ligadas ao Segundo Setor e ao que eu chamei de “Mercado”. De outro lado, temos outro grupo de festivais organizados por associações sem fins lucrativos e coletivos culturais, que estariam no chamado Terceiro Setor. Claro que temos um campo de contaminação, onde estas fronteiras não são rígidas, e temos empresas que acabam tendo uma atuação semelhante a entidades do Terceiro Setor, mas podemos perceber a existência de campos de interesse e padrões de conduta, que tem nesta distinção uma referência para o seu entendimento.

Uma das reuniões presenciais da ABRAFIN

Uma das reuniões presenciais da ABRAFIN

REG: Você também é representante do “Fora do Eixo” e agora preside a ABRAFIN. Podemos dizer que o “Fora do Eixo” chegou ao poder na ABRAFIN? Como fazer a diferença entre uma coisa e outra, para o grande público?

Talles: Esta é uma pergunta muito interessante e pertinente, e acho necessário explorarmos este tema inclusive para eliminarmos visões distorcidas sobre a relação entre a associação classista ABRAFIN e o movimento cultural Fora do Eixo. Para entender isso, é importante fazermos uma retrospectiva histórica. O movimento Fora do Eixo nasce junto com a ABRAFIN, por entender que era necessário construir um movimento mais amplo na música e cultura brasileira, já que uma entidade focada nos interesses dos festivais, até por uma questão estatutária, não poderia e não conseguiria dar conta de todo o espectro da música e da cultura no Brasil. Contudo, o Fora do Eixo sempre esteve presente na ABRAFIN, num primeiro momento com produtores de festivais filiados, e num segundo momento ocupando cargos na gestão da entidade. Como o Fora do Eixo tem por princípios trabalhar de forma colaborativa e coletiva, e é um movimento comportamental, que entende a cultura do ponto de vista antropológico, ele valoriza demasiadamente o trabalho associativo, e os quadros formados neste processo tem um entendimento muito claro da importância de trabalhar pelo outro, da necessidade de abdicar de projetos pessoais em nome de algo maior, e isso é uma característica fundamental para se ocupar um cargo de gestão numa associação que busque trabalhar por interesses coletivos de um número cada vez maior de pessoas. Ou seja, o Fora do Eixo é um processo de formação de gestores não apenas para a ABRAFIN, mas para qualquer associação ou entidade que tenha um fim público e não privado, e esta ocupação de espaço vem acontecendo em diferentes campos. Hoje diversos quadros que passaram pelo processo de formação do Fora do Eixo ocupam espaço no poder público e em outras associações. Daniel Zen, que organizava o festival Varadouro, no Acre, e é um dos fundadores e idealizadores do Fora do Eixo, ocupou nos últimos quatro anos a Presidência da Fundação Elias Mansour, no Acre (correspondente a Secretaria Estadual de Cultura), e acaba de assumir a Secretaria Estadual de Educação no seu estado. Rayan Lins, do Coletivo Mundo, em João Pessoa, acaba de assumir a Gerência de Ação Cultural na Paraíba. Chico Cesar e Heluana Quintas, do Coletivo Palafita, no Amapá, também assumiram recentemente um cargo na Secretaria de Cultura do seu Estado, apenas para citar três exemplos. Temos dezenas de quadros do Fora do Eixo em conselhos municipais e estaduais de Cultura e de Economia Solidária, em cargos em associações municipais e estaduais, em Programas Públicos como o Música Minas, ou seja, o trabalho de formação política do Fora do Eixo capacita as pessoas a entenderem melhor o setor público e a iniciativa associativa. Neste sentido, este processo de formação é amplo e não se restringe apenas a uma tomada de poder, ao contrário, ele auxilia no entendimento que para ocupar estes cargos você tem que ter muita responsabilidade com a diversidade de interesses que você representa, e acredito que aí esteja a diferença que temos que explicitar para o grande público. Desde o momento que fui eleito presidente da ARAFIN me afastei completamente de todas as demais atividades que estavam sobre minha responsabilidade, não apenas no Fora do Eixo, mas também na associação Goma, em Uberlândia, passando a ter foco exclusivo, nos próximos dois anos, na gestão da entidade, e na busca de representar com responsabilidade todos os festivais filiados. Ou seja, nos próximos dois anos, sou o presidente da ABRAFIN, que se capacitou no processo coletivo do Fora do Eixo, e que por isso tem princípios e valores conectados a este movimento, e acredito que isso seja inclusive um elemento muito importante para o sucesso nesta minha nova empreitada. Claro que não se trata simplesmente de virar uma chavinha e pronto, e que as pessoas continuarão me identificando com o Fora do Eixo, da mesma forma que o Fabrício Nobre continuou sendo identificado como o cara da Monstro Discos e do MQN. A diferença é que minha identificação é com um movimento cultural, que tenho muito orgulho de ter ajudado a construir.

REG: Além da ABRAFIN há outros organismos no meio independente, os “coletivos”, e outros com outros nomes. Como isso funciona? É tudo coordenado por vocês, da ABRAFIN?

Talles: A partir da experiência da ABRAFIN e do Fora do Eixo tivemos um processo de valorização muito grande na música brasileira do trabalho associativo, e a proliferação de associações e coletivos culturais. Claro que isso não é novo, já existia há muito tempo, mas acredito que tivemos um papel importante para a maior visualização desta prática, e isso se deve também pelo contexto político do país, que nos últimos oito anos, através de um governo popular, também valorizou os movimentos associativos e coletivos ligados a sociedade civil, num processo de “empoderamento” dos movimentos de base, com a realização de dezenas de conferências públicas, criação de conselhos e fóruns, e ampliação do diálogo com os movimentos organizados. Desta forma, temos hoje no Brasil centenas de organizações, associações, fóruns e coletivos de música, que sem dúvida têm na ABRAFIN e no Fora do Eixo uma referência, mas são geridas de forma autônoma. A ABRAFIN hoje é uma entidade que tem 44 festivais de música filiados e mais pelo menos 30 já cadastrados e em condições de se filiar, e sua gestão se dá para este grupo de filiados, e nada além disso. Já o Fora do Eixo é uma rede que tem 78 coletivos integrados em todo o país e mais pelo menos uma centena de pontos parceiros, e possui uma dinâmica de gestão e articulação própria e independente em relação à ABRAFIN. Além disso, temos uma série de outras iniciativas como as Casas Associadas, a Federação das Cooperativas de Música do Brasil, os CBACs (Comitê Brasileiro de Artistas Circulantes) e mais centenas de outras iniciativas municipais e estaduais, com as quais a ABRAFIN procura manter diálogo, mas evidentemente não tem nenhuma atuação direta, nem de gestão nem de articulação e mobilização. Contudo, ficamos extremamente felizes por perceber que a ABRAFIN acaba sendo referência para um momento mais colaborativo na música brasileira.

REG: Você citou de passagem os últimos oito anos, numa referência ao Governo Lula, que, de certa forma, continua com a Presidente Dilma Rousseff. Seria impossível a existência de toda essa estrutura associativa, caso outra linha política chegasse ao poder nas últimas eleições? Podemos concluir que a existência de governos ligados à esquerda e ao PT é que permitem essas ações associativistas?

Talles: Não sei se podemos fazer esta ligação direta, nos dias de hoje, onde a divisão esquerda e direita já não faz muito sentido, no meu ponto de vista. Contudo, acredito que os governos que apostam na valorização dos processos de organização da sociedade civil e criação de campos de participação desta sociedade para a criação de políticas públicas, sem dúvida, contribuem para o desenvolvimento de ações associativas. Contudo, acredito que temos um processo em curso no século XXI, de valorização de ações colaborativas e de desenvolvimento de redes, fomentando entre outras coisas, pelo desenvolvimento tecnológico e pela ascensão da internet, que também acabam sendo responsáveis por este novo momento da música e cultura brasileiras. Como coloca o pesquisador canadense Don Tapscoot, um dos mais respeitados estudiosos do impacto de tecnologias nas empresas e nas sociedades: “Não vivemos na era da informação. Estamos vivendo na era da colaboração. A era da inteligência conectada”. Este novo contexto, no campo político, nos coloca diante do desafio, de encontrar novas formas de analisar a política para além das divisões clássicas de esquerda e direita, e sem dúvida, uma valorização maior da cultura, em oposição a economia, é um outro elemento fundamental para pensarmos em novas alternativas de mediação social e política mais conectadas a estes novos desafios do século XXI.

REG: Você não acha que o “Fora do Eixo” só vai ter sentido se um dia ele chegar – de fato - ao eixo?

Talles: Esta é uma afirmação interessante, e que na verdade os membros do Fora do Eixo sempre foram provocados em relação a isso. O Fora do Eixo, apesar de ter nascido como uma articulação de cidades e estados fora do eixo Rio-São Paulo, sempre se definiu não como um movimento geográfico, mas sim como uma nova forma de se olhar para a produção cultural, num movimento que criticava os processos desenvolvidos pela indústria cultural, representada na música pelas grandes gravadoras, as famosas “majors”, que coincidentemente tinham suas sedes e campos principais de trabalho no eixo. Sempre soubemos que o desenvolvimento desta nova forma de trabalho teria como consequência a busca do dialogo com o eixo, até mesmo porque existem uma grande quantidade de artistas nestas cidades que também não se sentem representados e atendidos pelo processo desenvolvido anteriormente. Contudo, para pensarmos uma atuação mais clara no eixo era necessário que a gente construísse estruturas em todo o país que permitissem efetivamente oferecer uma alternativa Brasil, ao processo concentrado apenas no Centro, e foi isso que aconteceu nestes últimos cinco anos. O momento que o Fora do Eixo se encontra agora é justamente o de levar esta plataforma Brasil para o eixo Rio-São Paulo e a prova disso foi a criação da Casa FDE-SP que hoje reúne 20 pessoas, num grande escritório nacional, referência dos trabalhos desenvolvidos pela rede, e que assume este diálogo e busca esta contaminação das estruturas estabelecidas no Eixo. Trata-se de um movimento que busca o Eixo, não dentro da lógica da cooptação como ocorria anteriormente, com os artistas de outros estados sendo pinçados e emoldurados dentro de estruturas centralizadoras, mas sim da contaminação e da negociação, mantendo um compromisso forte com os princípios que fizeram com que o movimento crescesse e chegasse também a cidades como São Paulo e Rio de Janeiro.

REG: Quais as fontes de recursos dessa Casa FDE-SP, que tem 20 pessoas? Quais as atribuições dela?

Talles: As fontes de receitas da Casa FDE-SP são bem variadas. Na verdade, a Casa FDE-SP é hoje o grande ponto de articulação nacional das ações do FDE, sendo responsável pela coordenação das diversas frentes de trabalho que são desenvolvidas por esta rede hoje. Neste sentido, as atividades realizadas pelo Fora do Eixo no Brasil todo dão o suporte para a manutenção deste espaço. Como eu disse, são diversas fontes de recursos, através de centenas de projetos, alguns patrocinados por leis de incentivo, outros não. O FDE realiza dezenas de ações semanalmente, shows, agenciamento, seminários, e tudo isso é sistematizado, e os recursos são administrados de forma colaborativa entre o Banco FDE, um grande fundo nacional, e os coletivos. Além disso, existem as ações em São Paulo, que também geram receita. São cinco datas mensais no Studio SP, além de uma série de outros serviços que são realizados para diversos parceiros que temos na cidade e em todo o país. Grande parte destes recursos para a manutenção do espaço vem destas diversas iniciativas realizadas, diretamente no mercado da música.

REG: Nos últimos tempos houve muitos questionamentos quanto a utilização de leis de incentivo à cultura pelos festivais independentes, o que gerou até uma denominação equivocada de “indie estatal” por um colunista da Folha (e depois uma reportagem amenizando as coisas) aos festivais ligados à ABRAFIN. Qual a posição da nova gestão frente a essas questões?

Talles: Para nós a utilização de leis de incentivo pelos festivais independentes não é apenas legítima, como muito importante, e que inclusive ainda acontece de forma bastante tímida se analisarmos os números existentes hoje. Sabemos que o incentivo fiscal é praticamente a única forma, hoje, de patrocínio cultural no país, e sempre foi utilizada exaustivamente por todos os setores culturais, principalmente os mais bem posicionados. Grandes artistas da música, grandes montagens de teatro, grandes eventos como o Cirque de Soleil, praticamente toda a produção audiovisual brasileira, tudo isso conta com incentivo fiscal e se manteve até os dias hoje a partir desta forma de patrocínio. Ou seja, porque os festivais de musica independente não poderiam utilizar dessa plataforma de incentivo? A indústria automobilística no Brasil se consolidou com dezenas de incentivos fiscais e suporte financeiro, assim como as próprias grandes gravadoras e veículos de comunicação se consolidaram no país com estes benefícios estatais, muitas vezes feitos de forma escusa e pouquíssimo transparente. Ou seja, trabalhar para a criação de políticas públicas que valorizem festivais de música, responsáveis pela renovação e descentralização da música brasileira, é algo necessário e continua sendo uma das principais diretrizes de trabalho da entidade. Isso não significa dizer que não vamos trabalhar para a consolidação de um novo mercado musical brasileiro, ao contrário, é a criação destas políticas públicas consistentes para o setor independente brasileiro que vão ajudar a alavancar este trabalho feito pelos festivais para a consolidação deste mercado. Não podemos ser reducionistas. Para você ter uma ideia, o valor de incentivo para a promoção de uma única orquestra brasileira, como a OSESP, é pelo menos cinco vezes maior do que todos os festivais da ABRAFIN conseguiram captar via Lei Rouanet no ano passado. Uma única grande produção teatral, ou um único longametragem capta o valor que todos os festivais da ABRAFIN captaram neste último ano também. Paralelamente, a porcentagem de atuação sem incentivo é muito maior nos festivais de música do que em todos os outros setores, ou seja, uma provocação como essa só demonstra que precisamos ampliar ainda mais o incentivo aos festivais de música independente, principalmente pela capacidade de contrapartida e resultado apresentados. Acredito que para fazermos uma leitura sobre processos de política cultural no país, precisamos ter muita responsabilidade e conhecer de fato o contexto histórico, as condições existentes e os dados reais, para assim fazermos colocações menos reducionistas e com pouca consistência. Não dá pra simplesmente imprimirmos o “achismo” e trazer leituras pessoais para avaliar um processo político complexo como o do incentivo público no nosso país, e a ABRAFIN, inclusive, sempre vai estar aberta para oferecer todas as informações necessárias para qualquer pessoa que queira abordar este tema.

Revelação: vista geral de um dos shows do Festival Jambolada, realizado em 2009, em Uberlândia

Revelação: vista geral de um dos shows do Festival Jambolada, realizado em 2009, em Uberlândia

Na segunda parte da entrevista, Talles Lopes fala da dificuldade da entidade em se relacionar na grande mídia; das receitas da entidade; e responde às acusações de que os afiliados da ABRAFIN criam “panelas” que convidam sempre as mesmas bandas para tocar a cada ano. Clique aqui para ler a segunda parte.

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Comentários enviados

Existem 3 comentários nesse texto.
  1. Talles Lopes em abril 26, 2011 às 19:55
    #1

    Valeu Bragatto, pela possibilidade de utilizar o Rock em Geral pra comunicar o que estamos pretendo desenvolver nesta nova gestão da Abrafin, e já agradeço a todos que tenham paciência em ler a matéria. Gostaria apenas de fazer duas considerações sobre o texto de introdução da entrevista: 1) Não tenho informações sobre esta relação direta entre o nascimento da Abrafin como demanda da Petrobras, inclusive é a primeira vez que vejo isto sendo colocado, e a fonte não é minha. 2) Para a diretoria, o número de festivais aprovados no edital da Petrobrás é muito significativo, e foi o melhor resultado que já conquistamos. O que eu coloco na entrevista é que o número de festivais incentivados no geral, e o montante de recursos aportado, não pela Petrobras, mas de forma geral, ainda é pequeno, perto de outras atividades. Gostaria de esclarecer estes dois pontos, para que não tenhamos erros de leitura e façamos uma juizo errado de um Programa que vem sendo muito importante para o desenvolvimento da cadeia dos festivais independentes no Brasil.

  2. foca em abril 26, 2011 às 20:38
    #2

    Entrevista bacana e bem completa. Só um esclarecimento pertinente.

    “A ABRAFIN (Associação Brasileira dos Festivais Independentes) nasceu para atender a uma possível demanda da Petrobras para o patrocínio de um circuito nacional de festivais independentes.” A ABRAFIN não foi criada com o intuito de atender uma demanda da Petrobras. Foi criada basicamente para dar mais suporte aos festivias que estavam em enormes dificuldades no final de 2005, inclusive de captação de recursos, entendimento da importância de ações como essas exisitirem e afins.

    A Petrobras, grande incentivadora da cultura brasileira no geral, só se relacionou com a entidade muito depois de ela ser fundada, assim como outras empresas também.

    Abraço Bragatto!

  3. Michael Lima em dezembro 22, 2011 às 7:29
    #3

    A primeira grande merda que fizeram nessa nova gestão foi mudar a sede para São Paulo. Primeiro porque historicamente os governos sucessivos do Brasil concentraram todos os investimentos naquele eixo, esquecendo do resto do país. Dessa forma, o Fora do Eixo torna-se mais uma estrutura (essa voltada para uma pretensa solução de mercado cultural) que segue a antiga lógica de concentrar tudo no Sudeste. Não é a hora de dirigentes de movimentos culturais perceberem que deveriam ter um papel social bem maior do que pensam estar fazendo? O cara acha que encontrou uma solução para os problemas dos eixos comerciais da cultura, mas esquece de política, história, integração nacional e o papel que tem a entidade de se engajar nas soluções mais “macro” e menos consonantes com o velho padrão? O Fora do Eixo surge propondo alternativas, mas ae decide firmar a sede justamente onde está todo o jabá nacional. Com iniciativas como estas o resto do Brasil vai ter que seguir ao velho chavão de ver os recursos concentrados naquela região; de ter a organização do seu grupo firmada no mesmo local de sempre; de ter que se reportar ao Sudeste; de ver, como sempre, o resto do Brasil almejar estar no centro, sendo que este centro é o de sempre. Sendo assim, a entidade torna-se apenas mais uma a despromover a pluralidade dentro do Brasil. Isso vai totalmente contra sua própria razão de ser. Tá bom da galera enxergar pelo menos um palmo na frente do nariz, porque parece que a noção das coisas tá passando longe. Este é apenas um dos problemas que teria que abordar: ele parece besta, mas é totalmente relevante, pois novo paradigma com o velho “modus operandi” não cola. Não sou de Pernambuco, caso alguém ache que meu motivo é o racha entre vocês; apenas acho que o Brasil tem que descentralizar seus centros. Como você acha que será a dinâmica das coisas neste país se todas as organizações relevantes seguirem esta mesma iniciativa de concentrar seus centros no mesmo Sudeste de sempre? É uma merda totalmente fudida essa complascência com os paradigmas que fodem a nação. A bosta vai continuar excludente e esta nunca será uma nação desenvolvida. Já viu país de primeiro mundo com mais da metade do território sendo excluído dos acontecimentos? Que merda!

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