Agora aguenta
Depois de um período afastada, Pitty volta à carga em retomada do rock pesado e ao mesmo tempo acessível do início da carreira. Fotos Divulgação: Daryan Dornelles (1 e 2) e Pitty (3).
Também pudera. Nesse meio tempo, Pitty teve problemas de saúde que a levaram a uma internação às pressas (calma, pessoal, já passou!); enfrentou conflitos dentro de sua banda que resultaram em processos sobre os quais os advogados a orientam a não falar; e sofreu com a perda do guitarrista e amigo Peu Souza (saiba mais), que se suicidou no ano passado. A resposta vem já no título do novo álbum, em que a cantora escancara a capacidade de ter novas sobrevidas, numa espécie de “exorcismo” movido à música. Ou, por outra, a rock. Porque “Setevidas” (resenha aqui) não é só a retomada do rock na trajetória de Pitty e asseclas. É a volta à sua configuração mais pesada, mas ao mesmo tempo acessível, deixada de lado no álbum “Anacrônico”, de 2005.
Ou seja, quase 10 anos separam o modus operandi que levou Pitty ao posto de grande artista de rock no mercadão das últimas gerações dessa retomada. Assuntos como esses foram abordados nesta entrevista exclusiva, feita via e-mail, sem réplicas. Pitty fala como fez o novo disco, que acredita ser o mais pessoal; da nova formação da banda que lhe apoia; do material gráfico do disco, elaborado a partir de autorretratos; de parcerias como a que fez com Fernanda Takai, do Pato Fu; e do momento pelo qual passa o rock como um todo. Sim, a verdadeira Pitty está de volta e com a corda toda. Agora aguenta.
Rock em Geral: Quando exatamente você se deu conta de que estava na hora de encerrar o período com o Agridoce e voltar com a banda de rock? Já havia músicas engatilhadas ou você recomeçou do zero?
Pitty: Essa vontade de gravar vinha rolando desde que a turnê do Agridoce encerrou, no começo de 2013. Mas aconteceu tanta coisa durante o ano que ela só foi se concretizar mesmo lá para outubro. Foi quando realmente comecei a organizar um repertório, marcar ensaio, essas coisas. Pouca coisa veio do que tinha guardado, escritos e harmonias. A quase totalidade do disco foi feita realmente nesse período, quando resolvi que ia gravar.
REG: As questões envolvendo a mudança de integrantes contribuíram de alguma forma no tempo que levou para você voltar com a banda de rock?
Pitty: Não. O que conta nessa hora é ter vontade e material.
REG: O repertório de “Setevidas”, sobretudo a faixa-título, tem uma fúria, uma raiva que não aparecia há algum tempo. De onde vem isso?
Pitty: Do que estava guardado, contido todos esses anos e também dos acontecimentos da vida. Acho que o que você chama de “raiva” eu chamo de vontade, e essas coisas se confundem mesmo; a vontade, o desejo e o “sangue no zói” é uma coisa furiosa e selvagem.
REG: Você tem dito que o álbum é conceitual, mas esse conceito não aparece tão claramente, no alinhave dentre as faixas. Pode explicar melhor que conceito é esse e como ele foi criado?
Pitty: Eu acho que não disse isso não, hein? As pessoas é que interpretaram assim. O que eu disse é que vejo uma identificação entre as faixas - talvez por terem sido escritas num momento específico -, e que procurei construir uma narrativa na hora de decidir a ordem das músicas para que fizesse sentido e contasse uma história. Mas, acho que por haver temas recorrentes e pela ideia de resiliência permear todo o disco, pintou esse papo de conceitual.
REG: A grande maioria das músicas leva a sua assinatura sozinha. Esse é o seu disco mais pessoal, individual?
Pitty: Acredito que sim, especialmente em termos de letra. São temas muito pessoais. Mas embora eu componha as músicas e saiba onde quero chegar com cada composição, isso não aconteceria se eu não trabalhasse com pessoas que acrescentam nesse processo e que fazem a coisa acontecer em termos de arranjo, timbre. E eu gosto de trabalhar com gente que me ajuda e que tem a acrescentar, os meninos da banda e o Rafa (Rafael Ramos, produtor) contribuíram muito nesse disco.
REG: Em “Setevidas” (a música) você mostra um período pesado pelo qual parece ter passado. Colocar isso em letra de música é um processo de transformação ou só uma oportunidade de escrever uma letra?
Pitty: É um exorcismo. Um processo parecido acontece com quem escreve diários ou faz terapia; é tirar de você uma experiência através de palavras e vê-la de fora. Isso traz uma compreensão maior, quando se está no meio do furacão você não sabe que tamanho ele tem. Para mim a arte ocupa esse espaço, de externalizar coisas, de desaguar. O melhor é quando isso traduz o inconsciente coletivo, porque por mais que às vezes seja autobiográfico, a beleza está nesse encontro com o outro.
REG: Fale um pouco do sentimento de compor, arranjar e tocar a música “Lado de Lá”, espécie de despedida do guitarrista Peu. A gravação parece ter sido permeada por grande emoção. Foi mesmo?
Pitty: Foi, sim. Ainda é difícil ouvi-la, nem sei como seria tocá-la ao vivo. Não sou de compor coisas assim pontualmente, mas essa veio, me arrebatou e eu deixei sair. Esse assunto ficou me cutucando, e acho que essa foi uma tentativa de assimilar e refletir sobre isso.
REG: A música “Boca Aberta” parece ter alvo e munição bem definidos. Quem você incluiria no rol de homenageados nessa faixa?
Pitty: Eu mesma, principalmente. Por conta das minhas crises de ansiedade e busca desmedida, me considero muito boca aberta. E aí vai-se percebendo que tudo é bom e ruim, que o que vale é o tamanho e espaço que cada coisa ocupa na sua vida.
REG: Qual foi a participação dos novos integrantes – Guilherme Almeida e Paulo Kishimoto – no processo de composição e gravação do disco? E agora que a turnê começou, o que muda no palco com essa nova formação?
Pitty: O Paulo só entrou depois que o disco estava pronto, porque precisávamos de um reforço ao vivo para realizar todas as experimentações do disco. Gravei muitos instrumentos diferentes, moog, teclados, percussão; não dá pra fazer isso só com power trio. E ele é incrível, puta músico, veio somar muito no show. O Guilherme foi impecável na gravação, contribuindo com os arranjos e executando tudo com muita precisão e facilidade. No palco agora a formação é essa, e mesmo as músicas antigas ganharam novos elementos e arranjos. Tenho curtido muito o resultado.
REG: Musicalmente esse disco retoma um caminho pesado do qual você parecia querer renuncia no disco anterior, “Chiaroscuro”, e também, obviamente, com a Agridoce. Como se dá esse processo de retomada?
Pitty: Não é consciente ou racional. A cada disco acabo exprimindo o que é próprio do momento, é como uma fotografia. A desse momento é essa, talvez por um acúmulo de fatores. Não sei bem explicar, não penso nisso na hora de fazer disco. É só ir lá e fazer, deixar sair as coisas e depois ver no que deu.
REG: O repertório que você tem tocado nos shows, inclusive, com seis músicas de “Setevidas” e apenas duas de “Chiaroscuro” mostra, ao menos nesse momento, que você quer deixar esse período de lado. Vendo agora, com certo distanciamento, como você vê esse disco, que hoje parece “ponto fora da curva” e foi o menos bem sucedido comercialmente?
Pitty: Gosto muito do “Chiaroscuro”, não tem isso de deixar esse período de lado. Ele é importante para mim, pois marca um passo significativo na direção de experimentalismo e sonoridade que eu acabei chegando agora, no “Setevidas”. Em tese, por conta do momento de mercado e com a questão da tecnologia, cada disco tem a tendência de ser “menos bem sucedido comercialmente”, mas isso nunca foi premissa para se fazer música por aqui. Tem é que fazer e pronto. Talvez aos olhos do público médio o “Chiaroscuro” pareça um disco difícil, e acho que isso faz parte da trajetória. O repertório muda constantemente e nunca está fechado, e a cada turnê vai ficando mais difícil de encaixar as coisas, é natural. No momento tem mais músicas do “Setevidas” porque é o lançamento, é o disco em questão, é essa turnê. Mas isso vai mudando de acordo com as circunstâncias. Em shows mais populares, por exemplo, acho que a boa mesmo é ter mais músicas conhecidas para que a plateia se envolva e não seja um show frio. Já em shows com maioria de público sendo o fã que acompanha tudo, vale a pena tocar uns lado B e músicas novas.
REG: O repertório de “Setevidas” é bem curto (42 minutos), foi imaginado assim para caber em um vinil? Algumas músicas lançadas individualmente como “Pulsos” e “Comum de Dois” não têm registro de estúdio em disco. Chegou a cogitar inclui-las nesse álbum, ainda como bônus só no CD?Pitty: Não cogitei inclui-las porque elas fazem parte de outra época, outra história. Já estou em outro lugar agora. O track list de “Setevidas” foi pensado para caber num vinil, sim, é a quantidade perfeita. E também porque eram essas faixas que tinham a ver com o disco como um todo, ficou mais coeso dessa forma. As que sobraram não se encaixavam, não tinham a ver, era forçar a barra tentar enfiá-las ali.
REG: Como vocês optaram pelo Tim Palmer para a mixagem? Qual é a avaliação do resultado final, entre surpresas, descobertas e decepções?
Pitty: Queríamos um cara que tivesse a linguagem e a experiência do rock, e o nome dele surgiu nessa busca. Foi a melhor decisão que tomamos em relação a esse disco. Acabou que foi uma união de estéticas que pra gente funcionou muito: nossa gravação visceral e garageira com uma finalização classuda. Ele trouxe a elegância do rock inglês, já trabalhou com um monte de gente que admiramos. Só teve surpresa boa nessa relação, inclusive o fato de ele ter se envolvido com o projeto e acrescentado coisas.
REG: Vale mesmo a pena ter um sujeito inserido no mercado internacional para fazer esse tipo de trabalho ou conta mais a grife de ter um “nomão” desses nos créditos?
Pitty: Grife nenhuma compensa o custo que se tem com isso. O resultado é real e sonoro. Vale muito a pena, o know-how de um cara desses para rock é incomensurável. Basta ouvir o disco.
REG: A arte do disco foi meio que “feita em casa”. Tem a ver com o tal processo de retomada, já que você vem da escola “do it yourself”? Foi nesse sentido a escolha do Flávio Flock, conhecido das antigas, para fazer a arte?
Pitty: Sim. Isso fez parte de um período de redescoberta de valores, de identidade, de estética. Por isso a experiência de autorretrato. E a busca da independência e autonomia; o do “it yourself” mesmo, sentimento em detrimento de técnica. Brinco dizendo que aquilo é punk rock, são os três acordes que eu sei “tocar” na câmera, e se disso sai “música”, ótimo. O Flock é um cara que conheço desde os anos 90 e é um artista talentosíssimo. Eles faz esses lances de design pra viver e manda muito bem, mas você precisa mesmo é ver os quadros autorais dele. São incrivelmente interessantes.
REG: E a recepção do disco, de um modo geral nos shows e na mídia, como tem sido?
Pitty: Tem sido incrível. Até achava que as pessoas que curtem meu som estavam a fim de disco novo, mas foi muito além e fiquei feliz com a empolgação e receptividade deles. Uma coisa bacana também, e que me chamou atenção, foi uma inédita aceitação por parte da crítica, inclusive a mais ranzinza. Fico feliz de ter feito um disco que acabou sendo reconhecido por lados às vezes antagônicos; o do fã e o de quem escreve sobre isso.
REG: Faz um balanço do Agridoce? Deu mais certo do que você esperava? Quais os pontos positivos e negativos? Pretende retomar?
Pitty: Bom, como eu não tinha expectativa nenhuma em relação a isso e fui fazendo as coisas na medida em que apareciam, considero que deu mais do que certo. Quando tocávamos aqui na sala de casa nem pensávamos em disco, turnê, e tudo isso acabou acontecendo. Hoje, com certo distanciamento, vejo que o Agridoce foi muito importante para a minha carreira. Quebrou um estereótipo, bagunçou o jogo, embaralhou o que já se considerava definido. Isso foi ótimo, para o lado externo. Do lado interno, foi importante pra mim como compositora e como instrumentista, o desafio me fez encarar essas duas funções de forma diferente. Não temos planos definidos, mas pode acontecer de gravarmos de novo sim. É só aparecer vontade, músicas e tempo.
REG: Recentemente você fez uma música com a Fernanda Takai. Como essa parceria aconteceu e como vocês trabalharam na composição dessa música? Pretende gravá-la também?
Pitty: Fazia tempo que nós conversávamos sobre fazer algo juntas. E aí a Fê tava reunindo repertório para o disco novo dela e me chamou para essa parceria. Ela mandou a ideia e a música já bem estruturada; faltavam uns versos e uma ponte e eu completei. Mas fiz pensando nela, no vocabulário e na voz dela. Não penso por enquanto em gravá-la, acho que é uma música mais da Fernanda Takai do que minha. Feita pra ela, por ela.
REG: Recentemente você regravou a música “Agora Só Falta Você” para uma novela da Globo. Sua versão ficou ótima e imagino que você tenha adorado ter gravado Rita Lee, mas não fica aquela sensação de “Eu aqui com um disco inteirinho com músicas inéditas e os caras me pedem uma regravação?”, ainda que “Setevidas” tenha entrado na trilha de outra novela da mesma emissora?
Pitty: Sabe que não fiquei com essa sensação? E acho que por isso mesmo que você falou: já tem “Setevidas” na novela e regravar Rita Lee é pra mim uma honra sem tamanho. Fiquei mais foi encantada com o convite e com as múltiplas possibilidades: reinterpretar uma música que adoro, de um disco que eu amo e fazer a molecada conhecer a psicodelia brasileira através de Tutti Frutti, Mutantes, Secos & Molhados e tantos outros.
REG: O seu status de artista do primeiro escalão da música brasileira te coloca em contato com artistas que trabalham em segmentos popularescos e de gosto duvidoso (não me refiro à Rita Lee nem à Fernanda Takai). Você vê possibilidade de uma aproximação artística com esse lado ou cada um na sua é o melhor caminho?
Pitty: Não sei, não penso nisso, não. Porque quando a aproximação artística acontece, ela é natural e coerente, então não há com que se preocupar. Respeito geral e acho que todos merecem exercer o som e a vida que acreditam, eu faço isso na minha.
REG: No ano passado você deixou os fãs preocupados ao ser internada às pressas em um hospital. Passado o susto, pode dizer o que foi aquilo?
Pitty: Uma disfunção hormonal. Meu corpo tava muito doido. Descobri um hipotireoidismo, e tal. Mas toda tragédia é uma benção, e o resultado disso é que agora que descobri e comecei a tratar, tô na fase mais saudável do mundo. Mudança de estilo de vida, mesmo. Alimentação e exercício. Meu maior vício atualmente é endorfina, bicho!
REG: Certa vez você constatou que o espaço para o rock estava estreito no Brasil. Como você vê as coisas hoje?
Pitty: Tô numa fase otimista, tenho visto tanto lançamento de disco de rock bacana e o lance da volta das principais rádios do segmento. Me parece uma retomada semelhante a que já observei antes, onde o rock volta a ser mais pesado e com um discurso mais livre e denso, e por isso mais coerente para quem é adulto. Menos popularesco e infantilizado do que há uns anos. Não que ser popular seja ruim, mas acho massa que isso aconteça quando a matéria prima é consistente. Jamais subestimar o grande público, desejo que o rock atinja cada vez mais pessoas, mas oferecendo letras e sonoridade interessantes. Ninguém merece menos do que isso.
REG: Além da turnê subsequente ao lançamento do disco, o que mais está nos planos?
Pitty: Por enquanto, só isso mesmo. E já é bastante e consome todo tempo e energia!
REG: Daqui a alguns dias você volta ao Circo Voador, onde gravou o disco ao vivo, para duas noites de lançamento de “Setevidas”. Quais as lembranças e expectativas para esses shows?
Pitty: As expectativas são sempre incríveis para shows no Circo, e isso não é mera politicagem. Quem já foi em show da gente lá sabe do que eu tô falando. É uma catarse coletiva inexplicável. Já as lembranças, são igualmente incríveis. As que sobram, né? (risos)
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