Êxtase de cair
Imbatível, Matanza desfila crônicas do anti-heroísmo explícito no Circo Voador; festival criado pela banda teve ainda Cólera, Hatefulmurder e Monstros do Ula Ula. Fotos: Nem Queiroz.
A atração especial da noite, contudo, não é Jimmy London, o tal varapau que atua mais como intérprete do que como vocalista, mas o guitarrista Donida, que, de uns tempos pra cá, não tem saído de casa, muito menos para tocar nas intermináveis turnês da banda. Donida é a mola propulsora criativa (“culpado dessa merda toda”, brada Jimmy) que escreve as músicas, letras e desenha o logotipo, as diabas e tudo o que marca o Matanza e hoje está nas camisetas de todos os fãs. Guitarrista técnico dado a criações solitárias dos quintos dos infernos do metal, ele bola personagens sinistros que invariavelmente quebram a cara no final – o malandro que tem o caminhão roubado pela mulher, o bebum decadente que começa na mesa e termina no meio-fio ou o psicopata que explode o shopping e apodrece no xilindró -, mas que, de losers juramentados, se convertem em verdadeiros heróis para os entusiastas da banda. E eles são – repita-se - incrivelmente numerosos.
Com dois guitarristas, porque o operário Maurício segue “formando uma das cinco pontas do pentagrama”, o peso, turbinado por um volume de condenar exame audiométrico, é no mínimo dobrado, e Donida desfila riffs na sensacional “Pandemonium”, síntese da gênese headbanger, uma bela etiqueta para a noite; em “Mesa de Saloon”, já no início, com tonalidades destruidoras; e em “Meio Psicopata”, com o guitarrista empunhando o instrumento como poucos. Juntos, a duplinha arrasa em duelos matadores como os de “Eu Não Gosto de Ninguém”, cujo singelo título é autoexplicativo; na versão estendida (como é possível?) para “Maldito Hippie sujo”; e na impagável “Pé na Porta, Soco na Cara”, entre tantas outras.“O senhor está pronto para tocar igual ao mestre Lemmy?”, pergunta um metafísico Jimmy para Dony Escobar, fazendo do baixista a escada para a esquete humorística da vez. É a hora do bloco homenagens, que tem “Iron Fist”, do Motörhead, numa versão tosca, e “Five Feet High”, de Johnny Cash, duas pistas para se entender o som do Matanza; tente se for capaz. Dony, o último a assinar a carteira na trupe, está mais magro, mais solto e empunha o baixo com a autoridade necessária para o posto, e o baterista Jonas desfruta de uma plenitude no espancamento inclemente de tambores, pratos e adjacências difícil de ver por aí. É impressionante como eles não erram e tocam cada música em uma velocidade ainda superior em comparação com as versões registradas nos (já?) seis álbuns.
Que roda de dança não é notícia em show do Matanza, todo mundo sabe, mas registra-se que a porradaria come solta sem parar, com ênfase em clássicos absolutos como “A Arte do Insulto” e “Ressaca Sem Fim” ou nos braços erguidos no ritmo da mais que clássica “Ela Roubou Meu Caminhão”. Ou ainda em momentos de “descanso” como na comovente “Tempo Ruim” e na genial “Mulher Diabo”, em que Jimmy “toca” na guitarra de Maurício. O vocalista mostra bom fôlego na exaustiva “Odiosa Natureza Humana”, que dá título a mais perfeita obra do Matanza, mas que, sabe-se lá o porquê, cede poucas músicas ao show. Um reles senão de viés torto em uma noite – mais uma – memorável, encerrada pelo ecoar da guitarra somado ao cantarolar dos versos “Estamos todos bêbados/Bêbados de cair/E todos que não estiveram bêbados/Deem o fora daqui”. Não é que é verdade?Quem já amanheceu o dia com o Cólera tocando a todo vapor sabe que a banda não é de largar o palco. Por isso o baixista/vocalista Val pede desculpas por a banda tocar “apenas” 15 músicas, afinal é um festival. A formação, impensável sem Redson, falecido em 2011, é a possível com o bom Wendel Barros, que, além de cantar bem, guarda certa semelhança física com seu antecessor, e no fim das contas o grupo tem uma apresentação no mínimo honesta para o que pode ser feito. E – ainda tem mais essa – o quarteto (o baterista Pierre e guitarrista Fábio Belluci completam o time) tem músicas novas para um novo disco, sendo que uma delas é apresentada, justamente a sugestiva, já no título, “Festa no Rio”.
O repertório abrange quase todas as fases, mas é a mais antiga que agrada, com a desenterrada “Quanto Vale a Liberdade”; “Medo”, talvez o grande sucesso do Cólera, se é que se pode chamar assim, regravada pela parceira Plebe Rude - e falta uma noite com as duas bandas no Circo; “Humanidade”, necessária nesses tempos tão estranhos; e “Pela Paz Em Todo Mundo”, que inclui o refrão cantado em várias línguas como nas priscas eras do desbravamento das turnês internacionais no peito e na raça. Entre as mais “recentes”, “Águia Filhote” emociona pela homenagem à Redson, mas são poucas as que realmente empolgam, muito embora a roda de pogo não tenha fim. Jamais vai ser como antes, mas faz-se o que é possível e estão todos de parabéns. Porque a torrente de carisma Redson segue viva.A dúvida quanto à aceitação do público do Matanza ao metal pesadão do Hatefulmurder se dissipa em menos de um minuto. Depois de uma introdução com tinturas épicas, o quarteto vai ao ataque e a turba desanda a patinar de um lado a outro no salão como se fosse o quarteto carioca atração internacional. Isso porque o thrashão deles cai no gosto e não só por questões estéticas. A vocalista mandona Angélica Burns, que ainda conta nos dedos o número de shows que tem à frente do grupo, está bem mais entrosada e compõe uma linha de frente com o guitarrista Renan Campos e o baixista Felipe Modesto que ataca bem o público, em músicas como “No Peace For The Wicked” e “Worshipers of Hatred”, a primeirona. Em fase de preparação para gravar um novo álbum, o primeiro com Angélica, a banda fecha com a ótima “Scars to God”, num raro momento em que o solo de guitarra come solto, abrilhantado pelo peso animal vindo da boa equalização do som. Bom show de um combo que parece crescer em função da grandeza do público.
Na abertura, de outro lado, o Monstros do Ula Ula teve certa dificuldade no diálogo com a plateia. Não que o repertório do grupo, costurado entre punk, surf music e até classic rock não tenha agradado – teve aplauso e tudo -, mas parece que quem chegou mais cedo estava economizando forças para as atrações de fundo. Da formação original – o grupo é do início dos anos 00 e está de volta – só Diba (que já foi baixista do Matanza) enverga a guitarra, mas a banda tem integrantes rodados como o vocalista Lucky Lizard (Metalmania, X-Rated), o baixista Olmar Jr. (Black Future) e o baterista Bacalhau (Autoramas, Planet Hemp). O grupo está prestes a gravar um EP e mostrou músicas inéditas, muito embora tudo soasse novo para a plateia. O material é todo muito bom, mas vale salientar títulos como “Por Causa de Você”, já um clássico; “Piloto Automático”, com pegada sixties atualizada; e o bom arremate com “Não Posso Ficar”. Vale também destacar a intensidade implantada pelo bom guitarrista Gustavo Santoro.Set list completo Matanza:
1- Introdução
2- Matadouro 18
3- Eu Não Bebo Mais
4- A Arte Do Insulto
5- Bom é Quando Faz Mal
6- Meio Psicopata
7- Taberneira, Traga o Gim
8- O Chamado Do Bar
9- Em Respeito Ao Vício
10- Imbecil
11- Clube dos Canalhas
12- Todo Ódio da Vingança de Jack Buffalo Head
13- Eu Não Gosto de Ninguém
14- Tempo Ruim
15- Odiosa Natureza Humana
16- Ressaca Sem Fim
17- Sob a Mira
18- Maldito Hippie Sujo
19- Remédios Demais
20- O Que Está Feito, Está Feito
21- Pé na Porta, Soco na Cara
22- Conversa de Assassino Serial
23- Iron Fist
24- Five Feet High
25- Pandemonium
26- O Bebum Acabado
27- Rio De Whisky
28- Mulher Diabo
29- Mesa de Saloon
30- Tombstone City
31- Contrycore Funeral
32- Ela Roubou Meu Caminhão
33- Interceptor V-6
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