Resistente
Em novo espetáculo multimídia, Roger Waters revê carreira do Pink Floyd atirando para todos os lados, mostra músicas novas e homenageia Marielle Franco. Fotos: Daniel Croce.
O show é parte da turnê “Us And Them”, que roda o mundo desde o ano passado, e estreou no Brasil com grande impacto a perna sul americana em São Paulo, no último dia 9. Embora tenha ênfase nas músicas do álbum “The Dark Side Of The Moon”, de 1973, um dos mais bem sucedidos da história da música, e já tocado na íntegra na turnê de 2007, que passou pelo Brasil, é o impacto visual dedicado ao disco “Animals” (1977), baseado na obra de George Orwell, o que mais chama a atenção. No início da segunda parte do show, que dura mais de três horas, a fachada da usina de Battersea, que ilustra a capa do álbum simplesmente brota do chão e ultrapassa os limites do telão de dimensões alarmantes com as torres fumegantes em um efeito extraordinário. É a oportunidade para os fãs mais dedicados verem ao vivo as músicas “Dogs” e “Pigs (Three Different Ones)”, nem sempre incluídas nas turnês de Waters ou de David Gilmour, o outro ex-integrante do Pink Floyd que segue em atividade (veja como foi o show dele em 2015, em São Paulo).
A segunda ficou quase 30 anos fora do repertório de Waters, antes de ser incluída nessa turnê, e se converte praticamente em uma peça/manifesto anti Donald Trump, que, junto com seus pares, como a primeira ministra britânica Theresa May, assume certinho o papel de um político da época, e é exposto nas formas mais caricatas possíveis no telão, enquanto Waters exibe cartazes apanhados no piso com os dizeres “Os porcos dominam o mundo” e “Fodam-se os porcos”, para deleite da plateia. Roger Waters ainda interpreta o papel de um desses porcos, usando uma máscara bizarra, ao brindar taças de champanhe com integrantes/figurantes também devidamente mascarados. É quando o porco inflável gigante, que aparece originalmente “voando” na capa do álbum, sobrevoa a plateia com a mensagem – única dessa vez – “Seja humano”, em inglês e português. Com tanta informação visual, por vezes o público mais conectado com os hits do Pink Floyd não percebe o sensacional devaneio instrumental apresentado no palco, na música que, ao vivo, dura mais de 12 minutos.Como se vê, o ativismo de Waters não é implicância com o Brasil, não tem nada do “isto ou aquilo” polarizador desses dias, e vem de muito longe, é só ver o que sua obra, solo ou com o Pink Floyd, tem a dizer ao longo desses últimos cinquenta e tantos anos. Em 2012, por exemplo, na espetacular turnê “The Wall”, que passou pelo Brasil (relembre), Waters homenageou o brasileiro Jean Charles, executado pela polícia britânica em Londres, ao ser confundido com um terrorista. Daí o apelo para que se resista à males do mundo contemporâneo de um modo geral, exibido nas imagens e textos no final da primeira parte e durante o intervalo, onde aparece, entre outras ações de resistência, uma lista com representantes do neofascismo espalhados pelo mundo, incluindo o candidato de extrema direita ao governo brasileiro, cujo nome figura sob a tarja com a frase “Ponto de vista político censurado”, em português. Um momento que deveria ser de reflexão – o show é quase todo para se pensar mesmo – e que se converte, por parte da plateia, nos gritos de “Ele não” versus vaia de tom grave daqueles que não conseguem compreender o perigoso momento pelo que passa o Brasil, tampouco a obra de Waters e do Pink Floyd como um todo.
Momentos marcantes do ponto de vista da adesão em massa – o público foi estimado em 47 mil pessoas – acontecem no início e no final do show, não por acaso em músicas do “Dark Side…”. Na dobradinha “Brain Damage”/“Eclipse”, o prisma que ilustra a capa do disco, um dos grandes ícones da cultura pop em todas as épocas, é projetado sobre o público em três dimensões, por feixes de raio laser coloridos. No início, o reloginho que indica a entrada de “Time” vem crescendo devagar até explodir o despertador nos tímpanos – o volume nem estava tão alto como poderia - que dá início à música, para delírio geral. O desfecho com “The Great Gig in the Sky”, com as duas vocalistas, Jess Wolfe e Holly Laessig, ambas no maior estilo Pris Stratton, personagem de Daryl Hannah em “Blade Runner”, é simplesmente sensacional. Nas duas partes de “Another Brick in the Wall”, imagens atualizadas do filme “The Wall” aparecem na tela, em outro grande momento do ponto de vista da participação do público. Na música, crianças brasileiras participam vestidas de presidiários, até sacar o macacão e mostrar a camiseta com a palavra de ordem “Resist”, dando início ao tal intervalo, de cerca de 20 minutos, repleto de mensagens.Do disco solo de Waters, “Is This the Life We Really Want?”, lançado no ano passado, e cuja pecha é de ser muito parecido com Pink Floyd (!?), quatro músicas são apresentadas, três em um bloco único, no início da noite. Todas com imagens de alta resolução no telão, que tentam alinhavar as conexões do álbum em si, e o resultado, embora belo e com as músicas mais concisas, tem reação mais contemplativa por parte da plateia. O telão segue o modelo U2 (relembre), por assim dizer, vazando o tamanho do palco, no centro, com cobertura transparente para deixar as projeções passarem, e o efeito final é extraordinário. Em relação à insuperável turnê “The Wall”, a impressão que fica é que a crítica às grandes corporações, aqui substituídas por vilões em carne e osso (sobra até para Mark Zuckerberg e o inefável Facebook) é menor, assim como o bombardeio de imagens e informações à que o público era submetido naquele giro.
“Wish You Were”, talvez a melhor canção sobre saudade de que se tem notícia, e com a vocação parar a cantoria, garante outro momento lindo, e, nesse caso, nem é necessário impacto visual. O bis, depois do ato de resistência emocionante e que deu a real da noite, “Mother” é reinserida no repertório (havia saído e BH e Salvador) com a sutileza que lhe é peculiar, ao menos até o público vibrar com a resposta “Nem fodendo”, no telão, em português mesmo, para o verso “Mother should I trust the government?”. E o arremate mais que perfeito vem não só com a estonteante “Comfortably Numb”, mas com um dos melhores solos de guitarra já feitos, com o plus da saudade – ela de novo - de David Gilmour. E que, de imediato, abre na memória e na alma um espacinho para se lembrar de mais uma noite espetacular que só o rock pode proporcionar. E mais: que nem tudo está perdido. De verdade.Set list completo:
1- Breathe
2- One of These Days
3- Time
4- Breathe (Reprise)
5- The Great Gig in the Sky
6- Welcome to the Machine
7- Déjà Vu
8- The Last Refugee
9- Picture That
10- Wish You Were Here
11- The Happiest Days of Our Lives
12- Another Brick in the Wall Part 2
13- Another Brick in the Wall Part 3
Intervalo
14- Dogs
15- Pigs (Three Different Ones)
16- Money
17- Us and Them
18- Smell the Roses
19- Brain Damage
20- Eclipse
Bis
21- Mother
22- Comfortably Numb
Tags desse texto: Pink Floyd, Roger Waters
Excelente resenha do show. Mais que um show, assistimos um ato politico que incomodou muita gente!!! Sensacional!
Show absolutamente incrível! Fiquei impressionada com a banda maravilhosa que o acompanha, efeitos visuais de tirar o fôlego, optei por não participar dos protestos dos movimentos ele não e nem das valas preferi me entregar completamente a contemplação de um grande espetáculo de uma lenda da música que não começou a observar as mazelas da humanidade ontem.